Cientistas reconhecem o mesentério como 79° órgão do corpo humano

Cientistas reconhecem o mesentério como 79° órgão do corpo humano

Matéria publicada em 04/01/2017, no site https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/cientistas-reconhecem-mesenterio-como-79-orgao-do-corpo-humano-20727371

RIO — Mesmo após séculos de estudos sobre sua anatomia, o corpo humano ainda guarda surpresas para os cientistas. Até recentemente visto como um tecido com funções relativamente simples, o mesentério, espécie de membrana que une o intestino delgado à parede interna da barriga, dando-lhe sustentação, na verdade seria parte do que deve ser classificado como o “novo” e 79º órgão de nosso organismo. É o que conclui uma dupla de pesquisadores da Universidade de Limerick, na Irlanda, em artigo publicado no periódico científico “Lancet Gastroenterology & Hepatology”. Assim, afirmam, também será possível ver com novos olhos a origem e o desenvolvimento de algumas doenças que afetam o aparelho digestivo, abrindo um novo caminho para sua compreensão e tratamento.

Não que o mesentério fosse um completo desconhecido da ciência. Já em 1508, o famoso polímata italiano Leonardo Da Vinci desenhou em um de seus muitos cadernos (códices) uma estrutura em forma de leque observada durante seus estudos da anatomia humana que parecia ligar o intestino à parte interna da cavidade abdominal. Passados mais de 400 anos, já no fim do século XIX, foi a vez de o cirurgião inglês Frederick Treves descrever a estrutura em uma série de palestras sobre a anatomia abdominal no Real Colégio de Cirurgiões da Inglaterra. Na ocasião, ele apresentou a visão de que o mesentério era um tecido cuja função é manter no lugar o intestino delgado, assim como tecidos do mesmo tipo em diferentes segmentos do aparelho digestivo — como o intestino grosso e o reto —, que receberam os nomes de mesocólon e mesorreto.

Então um dos mais respeitados especialistas no tema, Treves teve sua perspectiva mantida nos manuais de anatomia até agora, mas uma série de estudos recentes mostra que o mesentério, o mesocólon, o mesorreto e o que se achavam ser demais segmentos do tecido, na verdade, formam uma estrutura única que desempenha funções específicas. Assim, toda esta estrutura deve ser classificada como um novo órgão, afirma J. Calvin Coffey, professor de cirurgia da Universidade de Limerick e principal autor do artigo, em que fez uma revisão destes estudos, alguns realizados por ele próprio.

— Esta descrição anatômica apresentada (por Treves) há mais de cem anos está incorreta — diz Coffey. — Este órgão está longe de ser fragmentado e complexo, e é simplesmente uma estrutura contínua. Neste artigo, que foi revisado e avaliado, dizemos que temos um órgão no corpo que não foi reconhecido como tal até agora. E quando o abordamos como todos os outros órgãos, podemos categorizar as doenças abdominais em seus termos.

Coffey e seu colega D. Peter O’Leary, também da Universidade de Limerick, não estão sozinhos nesta nova visão. Em atualização da sua 41ª edição, lançada no ano passado, o Gray’s Anatomia, um dos mais usados e respeitados livros de referência sobre o tema, passou a classificar o mesentério como órgão, no que deverá ser seguido por outras publicações do tipo. Além disso, especialistas brasileiros na área ouvidos pelo GLOBO aprovam a mudança de classificação. Professor de cirurgia gastroenterológica da USP e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Coloproctologia, Carlos Sobrado destaca que o mesentério e os outros segmentos do órgão agora reconhecido têm funções que vão além da simples sustentação estrutural, sendo responsáveis também pela irrigação sanguínea, defesa imunológica e transporte de nutrientes de e para os intestinos e a parede abdominal.

— O mesentério pode parecer uma estrutura anatomicamente simples, mas os estudos mostram que ela é contínua e de grandes responsabilidades — considera Sobrado. — Muitas doenças que acometem os intestinos são decorrentes de problemas na irrigação sanguínea, mas até agora não analisávamos essas anomalias do ponto de vista mesentérico. São situações que vemos muito na prática clínica, então é interessante pensarmos sobre o mesentério desta forma, como um órgão único.

Opinião parecida tem o médico Sidney Klajner, cirurgião do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

— Embora tenhamos que ver sempre como muita parcimônia este tipo de descoberta, a nova visão foi motivada pela observação de um crescente número de doenças que afetam o mesentério, sendo que algumas acometem única e exclusivamente o órgão — diz. — Assim, o artigo é importante por levantar o questionamento da forma como encaramos o mesentério, o que pode levar a novas linhas de pesquisa sobre as doenças do aparelho digestivo. Mas também ainda é muito cedo para especular que esta mudança de classificação vá trazer qualquer resultado prático.

Calvin Coffey alimenta expectativas.

— Sem o mesentério, você não pode viver — destaca o pesquisador. — Não há relatos de casos de um Homo sapiens vivendo sem mesentério. Mas até o momento não existia um campo de pesquisas do mesentério. Agora que estabelecemos a sua anatomia e estrutura, porém, o próximo passo é estudar sua função. Entendendo a função, podemos identificar anomalias, e daí uma doença. Colocando tudo isso junto, temos o campo da ciência mesentérica, a base de toda uma nova área.

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